Sol sonoro

Voz solar

Sou um cara que precisa de planos. Nem precisam ser detalhados, linhas gerais já me bastam. O que importa é que tenha a sensação de que tenho algum controle sobre o que está à minha frente. Sei que é ilusão, mas ela já me deixa mais tranquilo de que não vou enfrentar desarmado um de meus terrores: o caos. É esse terror que estou tentando manter longe desde ontem à noite, quando o país em que nasci resolveu se colocar no peitoril do terraço e olhar para o vazio, que tem data para olhar de volta: 28 de outubro.

Nessas primeiras 24 horas, procurei, obsessivamente, traçar planos. Primeiro, delineei os objetivos prioritários:

  1. Pôr minhas sobrinhas a salvo fora do país no mais breve período de tempo possível;
  2. Proteger minha mãe idosa, permitindo que ela continue a ter uma velhice tranquila.

A maneira de atingir essas duas metas me deixou tenso o dia todo. Fiz e refiz planos, principalmente para o primeiro ponto, o mais complicado por implicar em repassar possíveis contatos no exterior e pensar em como obter dinheiro para dar um mínimo suporte inicial para duas jovens. Ambos são um problema para uma família de origem modesta, cujos dois rebentos subiram um pouco na vida à custa de muito esforço e nunca realizaram conexões em posições sociais importantes.

Não conseguia passar mais do que dois minutos sem pensar no problema. Ia com ele na cabeça durante a caminhada quase diária que faço entre o trabalho e a minha casa no Centro, quando o Spotify inicia, no headphone Sony DB-200 que já viu dias melhores, os acordes de piano de “Let it grow”. Mal dá tempo de reconhecer a música quando a voz de Annie Haslam entra ouvidos a dentro e explode no meu coração.

Em outro lugar já escrevi sobre a beleza da voz da vocalista do Renaissance. Hoje, porém, a senti como nunca antes. Foi como se uma luz intensa de repente tomasse conta do meu peito e expulsasse a escuridão que tinha sentado praça ali desde a noite anterior. Confesso: os olhos marejaram e ficaram molhados por uma quadra, ao mesmo tempo que o peso aliviava sobre o coração. Sentia que se estava no meio de um negrume que está adensando — e ameaça tomar todo o horizonte -, em algum lugar o sol brilha. Não posso vê-lo ainda, e talvez jamais o veja novamente, mas sei que está lá. Annie Haslam garante com seu canto. E a voz dela jamais me deixou na mão.

Agora, é arrumar um jeito de botar minhas sobrinhas sob esse sol. É hora de voltar à prancha de projetos.

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